quarta-feira, 21 de março de 2007

Réquiem

Sem qualquer tipo de humor negro, mas vocês já foram a algum enterro no qual o defunto foi execrado pelos presentes? Já leram alguma homenagem póstuma que ridicularizava o morto? Não? Eu também.

Deve existir algum temor cristão que nos apavora ao ponto de falarmos bem até daqueles que fizeram as piores ações na Terra. Será que não é o medo de que o defunto volte para cobrar um “rito de passagem” mais tranqüilo aos mundanos? O historiador francês Jean-Claude Schmitt, em Os vivos e os mortos na sociedade medieval, nos lembra que, no imaginário medieval cristão, “o morto podia aparecer a um parente ou amigo para reclamar-lhe os sufrágios de que tinha maior necessidade”. Vai ver que ainda existe um resquício desse imaginário atualmente e nós temamos ser mal-assombrados por tais fantasmas.

Por isso, talvez, as pessoas sempre interfiram quando alguém resolve falar sobre um morto:

- “Deixe pra lá. Ele já morreu e não pode respondê-lo.” – dizem.

Em todo caso, a melhor definição que já encontrei para todas aquelas honras de última hora está no livro Um Deus passeando pela brisa da tarde, do escritor português Mário de Carvalho:

“O decênviro Pôncio Velutio Módio produziu um arguto e prolongado elogio fúnebre, inspirado em exemplos conhecidos, com uns toques de Plutarco, duas frases inteiras de Tibério Graco e abundantes furtos de Cícero, muito descarados. Se Trifeno não o tivesse merecido vivo, não o desmereceria totalmente em morto. Que importa, se uma oração fúnebre não se adapta exatamente ao homenageado? Quem sabe como foi, realmente, um homem? Se a morte não o tivesse soprado tão cedo, talvez ainda Trifeno viesse a efetuar as benfeitorias que lhe eram atribuídas. Não é, verdadeiramente, ao homem que viveu, e cujos despojos ali jazem, sobre a pira funerária, na sua inerme materialidade, que se dirigem os elogios. Antes ao projeto de homem que as circunstâncias poderiam ter revelado. Todos, incluindo o interessado, prefeririam ter sido íntimos deste último. É, pois, legítimo e mesmo obrigatório que se o convoque. Uma elaborada homenagem, como aquela, lustra quem a profere, lustra quem a ouve e lustra a cidade, acrescentando-a com a revelação de mais um cidadão distinto, agora infortunadamente falecido, em que antes – com culpa – ela nem havia atentado.”

Lindo, não é? Espero que alguém faça igual quando chegar minha hora.

segunda-feira, 19 de março de 2007

Razão e sensibilidade?

Gostaria de ter iniciado minha participação no blog de outra maneira. Porém, como meu nome já estava virando enfeite e juntando poeira, resolvi começar apenas discutindo um pouco a repercussão do artigo Razão e Sensibilidade, do professor Renato Janine Ribeiro, publicado em 18 de fevereiro deste ano, ou seja, um mês atrás, na Folha de São Paulo.

Marcado pelo horror da morte do menino João Hélio, Renato Janine Ribeiro, professor de Ética da Universidade de São Paulo, escreveu algo que me deixou boquiaberto. No artigo, ele deixava entender que defendia a tortura e a pena de morte, questionando, inclusive, os direitos humanos. Em determinado momento, chegou a lançar uma pergunta ao ar: “É-se humano somente por se nascer com certas características?”.

O que mais me impressionou no artigo não foi o que nele estava escrito, mas de onde veio o discurso – de um intelectual, um dos maiores nomes da filosofia nacional, professor de Ética da maior universidade do país. Um homem que aparece com freqüência nos principais meios de comunicação do Brasil – pois apresenta um programa no canal Futura, das organizações Globo – e escreve em vários jornais de circulação nacional, tal como a Folha. De onde se esperava maior razoabilidade e sensatez, veio um discurso que justificava a raiva da turba, como diria a melhor resposta ao artigo, escrita pelo professor Idelber Avelar.

No entanto, acredito que a leitura do texto de Renato Janine nos permita iniciar uma discussão acerca do problema da criminalidade no Brasil, principalmente nos grandes centros urbanos. Logo após a morte de João Hélio, surgiram debates nos quais a redução da maioridade penal foi sugerida com maior freqüência. Eu me pergunto se essa medida resolveria o problema da violência no nosso país.

Quem leu ou assistiu Falcão – Meninos do Tráfico, de MV Bill e Celso Athayde, percebeu que o tráfico se utiliza, cada vez mais, de menores de 18 anos. Tudo bem. Só que a maioria daqueles garotos não passava dos 14 ou 15 anos! Quer dizer, se reduzirmos a idade de cadeia, a criminalidade seduzirá meninos cada vez mais novos, talvez até crianças, para a realização de serviços “menos perigosos”, como aviãozinho ou o próprio falcão, que fica vistoriando a favela, de olho na polícia.

Por mais que peçamos rigor nas leis contra crimes hediondos ou a tal redução, nada adiantaria se não existisse um programa em longo prazo que se utilizasse de educação, cidadania e reintegração de menores infratores à sociedade. E a pobreza, como quis insinuar a Veja, não é uma falsa questão do crime. Não é a única também.

Acredito que essas questões devem ser discutidas sempre pautadas na razão. O discurso inflamado pode até ser bonito e popular, mas nem sempre é correto. Defender a razoabilidade não é perdoar assassinos: é compreender que política de estado não pode ser modificada assim, de sopetão.